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Historiolatria, Historiofobia, Historiomania, Historiosofia: como deve ser nossa relação com o passado?

Os historiadores geralmente evitam os termos “historiolatria”, “historiofobia”, “historiomania”, “historiofilia” e até “historiosofia”, devido inúmeros fatores, entre eles, a dificuldade de se precisar o uso de cada um destes. Uso consagrado entre os historiadores é o caso do termo historiografia que significa o estudo de como se escreve a história ao longo do tempo. Na atualidade, a escrita da história, ou seja, a descrição e interpretação daquilo que ocorreu no passado, é um fazer profissional e científico, que se baseia em regras acadêmicas, princípios, teorias entre outros quesitos.

Contudo, recentemente inúmeros acontecimentos têm preocupado os historiadores. O principal deles é o negacionismo que duvida daquilo que já está assentado e comprovado e nega a existência de fartas evidências sobre o passado. Mas todas essas questões nos levam a uma indagação importante a qual não podemos e devemos evitar.

Como deve ser nossa relação com o passado?

Devemos idolatrar o passado (historiolatria)? Ou ter aversão do que ocorreu no passado (historiofobia)? Ou então, ter o hábito de colecionar o passado de maneira quase viciosa (historiomania)? Ou, o mais adequado seria gostarmos do passado (historiofilia)? Ou quem sabe buscar sabedoria no passado (historiosofia)? Enfim, qual é a relação recomendada que devemos ter com o nosso passado?

Dificilmente podemos ter uma atitude única e uniforme com relação ao passado humano pelo fato de que ele não é todo igual e homogêneo. As pessoas não querem que a escravidão, submissão das mulheres, ditaduras e absolutismo que foram fenômenos do passado retornem e embaralhem nossas vidas. Por outro lado a democracia, o estabelecimento da liberdade, a expansão da escolarização, os direitos humanos e controle das epidemias, são conquistas que são lembradas e comemoradas e cuja continuidade desejamos.

Portanto, não podemos ter uma relação única e uniforme com o passado humano pelo simples fato que ele é diverso e contém acontecimentos memoráveis e execráveis. Alguns fatos do passado são transformados em feriados para serem sempre lembrados, outros se tornam traumas difíceis de superar no presente, como crises, epidemias, guerras e geralmente algumas pessoas procuram esquecer tais acontecimentos e outros impropriamente e de maneira desaconselhada procuram negá-lo.

Enfim, o passado deixa marcas, isso é inegável, ninguém está imune ou escapa do passado, seja de forma individual ou coletivo, mas a nossa relação com ele pode variar. O poeta brasileiro Mário de Andrade certa vez pronunciou-se sobre este assunto numa frase que ficou célebre: “O passado é uma lição para se meditar, não para se reproduzir”. Essa frase guarda sua atualidade e sabedoria. Afinal, até episódios do passado que consideramos positivos, como o nascimento da democracia na Grécia Antiga, por exemplo, merecem reflexão, afinal a democracia antiga é diferente da moderna e muitos atualmente a consideram insuficiente para nossas sociedades atuais. Enfim, dificilmente modelos do passado podem ser aplicados na atualidade sem alterações e adequações.

Assim, não podemos ficar aprisionados no passado e também não podemos ignorá-lo ou negá-lo. Nossa visão sobre acontecimentos do passado também pode ser alterada em função de novas descobertas ou mesmo revisões históricas e mudanças de valores. Um exemplo é a história da cidade de Canudos no interior da Bahia, que na época foi condenada e destruída e hoje considera-se uma experiência popular que tinha objetivos elogiáveis e falhas sociais como em todas as cidades brasileiras.

Refletir sobre o passado não é uma atitude simples, pois o que está em jogo é toda humanidade. Longe da “historiomania” de antiquários e colecionadores de relíquias o passado humano como nos ensinou o filósofo Friederich Nietzche, a história, precisa ser visto como algo vivo e presente entre nós. O passado não pode ser apenas uma erudição que pesa sobre nós, um fardo. Ele precisa ser visto como o nosso encontro com a humanidade. Afinal, todos nós que estamos vivos sobre a Terra, somos de certa forma uma extensão de toda história humana.

Os historiadores na atualidade chamam de “cultura histórica” nossa forma de nos relacionarmos com o passado e salientam que é necessário termos consciência de que somos seres históricos de passagem neste mundo, cuja data inicial e final um dia será conhecida por aqueles que nos sucederem.

Assim, o papel da Educação escolar é cada vez mais importante numa época de tantos negacionismos como a atual. Longe de manias, idolatrias, fobias, filias e outras posturas, precisamos ser responsáveis com o passado da mesma forma com que nos preocupamos com o futuro. O passado pode servir para maus usos e pretexto para abusos da mesma forma que ocorre com a preocupação em relação ao futuro. Por isso, o passado precisa ser estudado de maneira científica, rigorosa, alicerçado em fontes que atestem e explicado apenas por intepretações plausíveis fundamentadas em boas pesquisas.

Na nossa sociedade coexistem inúmeras posturas em relação ao passado e algumas são reconhecidamente inadequadas e outras até patológicas. Apenas uma Educação Histórica adequada funcionará como antídoto para prevenir e corrigir distorções que temos na lida com o passado. Uma Educação Histórica que busque emancipar as pessoas e não uma educação que objetive adestrar pessoas ou reduzi-las a seres que tateiam no escuro enquanto a vida passa…

 

Prof. Luciano Marcos Curi – Pós-Doutor em História Social – IFTM – Câmpus Uberaba – Contato: lucianocuri@iftm.edu.br

Por Editor1

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