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O que é letramento histórico?

 

Cleópatra ou Carlos Magno quem veio primeiro? Quem chegou primeiro as Américas: Cabral ou Colombo? Na época feudal haviam fábricas com máquinas? O ser humano surgiu no Oriente Médio? O cristianismo é a religião mais antiga do mundo? A China era desconhecida na época do Império Romano? A Guerra Fria não teve impacto no mundo pois nunca verdadeiramente se consumou e efetivou-se. Será? A pré-história é sempre dividida em paleolítico, mesolítico e neolítico? Qual a diferença entre feudalismo e capitalismo? Bahia, Minas Gerais ou São Paulo: qual desses Estados surgiu primeiro? O divórcio já existia no Egito Antigo? O botão de nossas roupas é uma invenção medieval ou moderna? E o zíper? Como era a vida antes da invenção da geladeira? Quem foi a pessoa que por mais tempo governou o Brasil?  De onde os historiadores retiram as suas informações?

Essas são algumas perguntas que podem gerar certo embaraço e alguns debates calorosos. Mas, porque? A compreensão do passado humano não deveria ser uma tarefa fácil e tranquila? Quais sãos as dificuldades que temos de enfrentar ao lidar com o passado humano?

A resposta para as últimas três perguntas é que a compreensão do passado humano, mais antigo ou recente, impõe certas dificuldades que muitas pessoas desconhecem.

Mas porque isso ocorre? Isso ocorre por diversos motivos, sendo um deles a dificuldade das pessoas de pensarem de modo historicamente científico, ou seja, de estarem munidas de um pensamento histórico. Atualmente, o passado humano é estudado por pesquisadores que buscam novas informações e fontes para fundamentar suas interpretações que precisam estar de acordo com os demais conhecimentos disponíveis em diversas ciências, ou deles discordar dentro das regras da produção científica.  Nem todas as interpretações são possíveis, apenas algumas são plausíveis. Existem critérios científicos para isso, que nos informam a pertinência ou improcedência de certas explicações. Esse raciocínio é válido para todas as ciências, humanas, exatas ou naturais, embora, as Ciências Históricas tenham algumas particularidades e singularidades.

Desse modo, ao longo das últimas décadas diversos historiadores brasileiros, europeus e de outras partes do mundo, desenvolveram a partir do estudo e observação das nossas dificuldades de lidar e compreender o passado humano alguns conceitos para ajudar historiadores profissionais e professores de história a compreenderem nossas limitações e desenvolverem estratégias de superação. Afinal, não compreender a história humana é algo sempre grave, pois, entre outras consequências, pode bloquear o pleno desenvolvimento das pessoas e impedir que elas consigam se localizar no tempo, espaço, mudanças e permanências de sua época. Quais são esses conceitos? São eles:

Cultura histórica Nossa forma individual e coletiva de nos relacionarmos com o passado. Enfim, Historiolatria, Historiofobia, Historiomania, Historiosofia: como deve ser nossa relação com o passado?
Consciência histórica Compreender que somos seres históricos de passagem neste mundo. Somos seres históricos e que a história que começou na África está em andamento e temos muitas responsabilidades para com ela. Percebemos a relação estrutural entre passado, presente e futuro. Tomar consciência que somos seres construídos historicamente e não revelados ou desabrochados biologicamente. Conscientes ou não, somos seres históricos. Enfim, a vida é uma história.
Letramento histórico ou Literacia Histórica Letramento Histórico ou Literacia Histórica como sendo um conjunto de conhecimentos e proposições utilizados para interpretação e compreensão do passado. Esse processo é entendido como a apropriação de fazeres que estimulam o estudante ao raciocínio histórico, proporcionando ao indivíduo a capacidade de operacionalizar um raciocínio histórico, com os conceitos e categorias utilizados pelas Ciências Históricas. Enfim, usa conceitos, categorias e procedimentos típicos da Ciência Histórica para interpretar o passado e lidar com ele.
Educação Histórica Educação escolar que evidencie a constituição histórica de indivíduos e sociedades, em todas épocas. Educação Histórica, que desenvolva em nós uma consciência histórica de que somos seres históricos, queiramos ou não, compreendemos ou não, aceitemos ou neguemos. Enfim, uma educação que produza consciência histórica.
Razão Histórica ou Epistemologia da História Como é possível conhecer o passado? É mesmo possível saber o que aconteceu no passado? Como é possível saber se o que dizem os historiadores o sobre o passado é veredeiro? Será verdade? O fato de haver imperfeições sobre nossa compreensão sobre o passado significa que todo nosso conhecimento sobre ele é descartável? Eis a questão….  Essas perguntas são válidas. Enfim, existe uma área científica que investiga tais questões e se chama Epistemologia da História ou Razão Histórica.
Raciocínio Histórico Aprender o passado utilizando o mesmo raciocínio das Ciências Histórica, de maneira científica e longe dos negacionismos e da utilização de interpretações controversas e descartadas. Enfim, ser crítico ao interpretar o passado, seus acontecimentos e personagem.
Pensamento Histórico Interpretar os fatos de maneira que os conecte ao presente. A fim de que eles saibam se orientar no tempo e compreendam as influências nos hábitos, comportamentos, padrões de consumo, relacionamentos, modelos de trabalhos que alteram suas formas de viver em sociedade fazendo-os atuarem como cidadão críticos e éticos. Seria nunca aceitar as informações, ideias, dados sem levar em consideração o contexto em que foram produzidos, o tempo, classe social, posicionamentos políticos, peculiaridades culturais e as possibilidades e limitações do conhecimento que se tinha quando se produziu o que é posto para análise. Trata-se de um saber metateórico e reflexivo. Enfim, um pensamento histórico depende uma Educação Histórica atuante e praticada com zelo e responsabilidade.
Imaginação Histórica Como seria viver no país no período da Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964-1985)? Como seria viver na Época Medieval? Transportar-se para o interior da cabeça das outras pessoas, e pensar por si mesmo a forma como elas imaginavam o mundo, sua época e também os debates e controversas de sua época. Enfim, saber dizer se nossos antepassados estavam corretos comparados com aquilo que a Ciência Histórica posterior pesquisou e revelou.

Fonte: elaborado pelo autor

 

Conforme se pode observar na tabela anterior são vários conceitos e todos eles são interrelacionados e conectados. Apesar disso eles não são todos iguais e carregam suas particularidades embora, assim como as duas faces de uma moeda, são partes de um mesmo todo e alguns podem ser pensados apenas na relação com outros e nunca possuem existência isolada e separados dos demais.

Dito de outro modo, os desafios são os mesmos que ocuparam boa parte dos historiadores ao longo dos séculos XIX e XX e continuam presentes neste século XXI. Quais são esses desafios? A resposta é assustadoramente simples. Pesquisar o passado humano para conhecê-lo e ensiná-lo a toda a população que precisa saber situar-se, localizar-se e compreender o mundo e a época em que vivemos. Desafios colossais.

Neste ponto a discussão sobre o letramento histórico se apresenta. Os cidadãos e cidadãs precisam conhecer e dominar razoavelmente o instrumental conceitual, procedimental, temporal, espacial, narrativo e científico utilizado no estudo, conhecimento e interpretação do passado humano. Diferente da época pré-histórica, por exemplo, que dispunha apenas de explicações lendárias e míticas para o passado e que não eram examinadas criticamente, na atualidade cada afirmação sobre o que ocorreu com os seres humanos passa por verificações e estudos e não são aceitas de qualquer maneira, independente de quem esteja proferindo essas explicações. Nossa forma atual de compreender o passado é ditada pela ciência, notadamente, as Ciências Históricas. Compreender o modo de proceder destas ciências específicas que lidam com o passado humano é que se denomina de letramento histórico.

Isso quer dizer que todos nós devemos ser historiadores. A resposta é não. Significa que temos que estar preparados e munidos dos recursos científicos disponíveis para lidar com o passado pessoal e coletivo. Historiadores são pessoas que escolhem o estudo do passado humano como seu ofício e profissão, seu ganha-pão. Mas a compreensão dos conteúdos científicos não é, e não pode ser, exclusividade de pesquisadores profissionais. Da mesma forma que temos que pensar as doenças, a pobreza, as injustiças, entre tantos exemplos, de maneira científica, bem como, todos os demais problemas humanos.

E, a Educação e nossas escolas? Essas sem dúvida têm um grande papel a cumprir e a sociedade para o seu próprio bem deve colaborar. Afinal, pessoas despreparadas podem ter sua vida comprometida e são um perigo para si próprias, e também para toda a sociedade. A história humana é um patrimônio vivido que pertence a todos nós, e desse modo, todos temos o direito de portar as ferramentas que são necessárias para sua compreensão.

Nossos jovens devem compreender que o estudo da história é um meio para lhes auxiliar a compreender os problemas da vida e não o contato com visões estereotipadas, negacionistas e divergentes do que a ciência já evidenciou e comprovou. O estudo da história deve colaborar com o sentido para nossas vidas. O ensino de história deve contribuir para compreendermos nossa história, a história da sociedade em que vivemos e a completude da história humana, ou seja, ele deve converter-se numa Educação Histórica que busque emancipar as pessoas e não uma educação que objetive adestrar pessoas ou reduzi-las a seres que tateiam no escuro enquanto a vida passa…

 

Prof. Luciano Marcos Curi – Pós-Doutor em História Social – IFTM – Câmpus Uberaba – Contato: lucianocuri@iftm.edu.br

 

Por ego

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