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A maioria das pessoas conhecem livros didáticos. Seja nas escolas, ou mesmo em outros lugares o livro didático é um velho conhecido dos brasileiros e brasileiras. Existem livros didáticos de matemática, língua portuguesa, geografia, biologia, entre tantos outros. Mas, e livro didático sobre a história brasileira? Qual foi o primeiro livro didático sobre a história do Brasil? Afinal, neste ano de 2022, comemora-se o Ducentenário da Independência. Quem elaborou a primeira obra para ser utilizada nas escolas para o ensino da história brasileira? Quem, quando, onde e como?

Pois bem. Foi um português de nascimento, no ano em que o primeiro governante do Brasil independente renunciou, que foi lançado no Rio de Janeiro, uma versão brasileira de um livro francês traduzido, adaptado e ampliado e que foi adotado como nosso primeiro livro didático da história brasileira.

A história é a seguinte. Em 1831, o capitão português Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde traduziu um livro francês que fora publicado em 1825 por Ferdinand Denis (1798 – 1890) e que depois serviu como nosso primeiro livro didático. O livro de Ferdinand chama-se: “Résumé de l’Histoire du Brésil, suivi du Résumé de l’Histoire de la Guyane.” (Tradução livre: Resumo da História do Brasil, seguido do Resumo da História da Guiana).

Na verdade, o capitão Bellegarde não apenas traduziu, como corrigiu e ampliou o livro de Ferdinand Denis até o ano de 1828 e o publicou no Rio de Janeiro em 1831, mesmo ano em que o então imperador Dom Pedro I, primeiro governante do Brasil independente, renunciou ao trono e retornou para Portugal. O título do livro de Bellegarde ficou com o seguinte título: “Resumo da História do Brasil até 1828: traduzido de Ferdinand Denis, correto e augmentado”.

A versão brasileira de Bellegarde foi acrescida de um capítulo inicial que fala sobre a época indígena, período anterior a 1500, hoje chamada também de Pré-história brasileira, e também o texto foi atualizado e ampliado até o ano de 1828. O livro de Bellegarde ficou então com seis capítulos que são: “Primeira época: O Brasil antes da conquista”; “Segunda época: O Brasil conquistado pelos portugueses”; “Terceira época: O Brasil no domínio hespanhol”; “Quarta época: O Brasil livre do jugo d’Hespanha”; “Quinta época: O Brasil como sede da monarchia portuguesa”; “Sexta época: O Brasil Império Constitucional Independente”.

O livro de Bellegarde/Ferdinand recebeu apoio na época das autoridades brasileiras do recém-independente Império do Brasil e foi adotado como “compêndio” escolar nas escolas em 1834, após aprovação pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, já em sua segunda edição, pois a primeira tinha se esgotado, por causa do sucesso que a obra alcançou. Compêndio era o nome da época para o que a atualidade chamamos de livro didático.

Para obter aprovação junto da Câmara do Rio de Janeiro foi organizada uma verdadeira “campanha patriótica” que contou com inúmeros colaboradores políticos e financeiros. No final do seu livro Bellegarde colocou uma lista com todas as pessoas que contribuíram para que sua obra fosse publicada e depois oficializada como nosso primeiro manual escolar brasileiro.

O livro também foi adotado no recém-inaugurado Colégio Pedro II, criado em 1837, e foi também alvo de elogios por parte dos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (o IHGB), instalado em 1838.

Mas quem foi então nosso primeiro autor de livro didático sobre a história nacional? O que sabemos sobre o capitão, depois major, Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde?

Bellegarde nasceu em Lisboa em 12 de outubro de 1802 e faleceu em Cabo Frio (RJ) em 21 de janeiro de 1839 com apenas 37 anos de idade, numa época que sua obra didática-histórica fazia sucesso no Brasil. Ele veio para o Brasil em 1808 na mesma viagem que trouxe a família real portuguesa, na época fugida da invasão napoleônica a Portugal. Com quinze anos de idade ingressou na Academia Real Militar do Rio de Janeiro e três anos depois recebeu a patente de Segundo-Tenente. Em 1821, foi nomeado capitão-ajudante do governador de Moçambique, na época também colônia portuguesa e partiu para a África. Em 1825, foi para Europa para completar os estudos e lá formou-se em Belas-Letras e engenheiro-geógrafo em 1828. Retornou logo em seguida ao Brasil onde foi responsável por projetar e desenhar diversas obras, entre elas o Farol de Cabo Frio e diversas pontes em vários estados brasileiros. Publicou algumas obras, sendo a mais famosa a sua versão de 1831 do livro do francês Ferdinand Denis. Bellegarde aderiu a independência brasileira o que explica em parte sua aceitação pelas elites brasileiras.

Ao longo do século XIX a obra de Bellegarde acabou sendo substituída por outros livros didáticos, principalmente após sua morte e a desatualização que obra sofreu devido aos novos acontecimentos brasileiros, americanos e mundiais que alteraram a história brasileira. Decididamente a morte precoce limitou a obra e comprometeu sua possível longevidade.

Interessante observar que mesmo sendo um português de nascimento e brasileiro por opção, Bellegarde dedicou um capítulo de sua obra a história indígena que ele via com os olhos europeus típicos de sua época, mas ainda sim não excluiu, como fez o próprio Ferdinand Denis e outros autores que vieram depois.

Contudo, não podemos exagerar nas cores. A história de Bellegarde era de certa forma uma versão portuguesa da história da recém-independente nação brasileira. Assim, durante as primeiras décadas da vida brasileira independente o livro de Bellegarde usufruiu de destaque e prestígio, pela linguagem simples, o tom nacionalista e a afirmação da nacionalidade brasileira.

Bellegarde ajudou a responder às perguntas: Como ensinar a história pátria para um país que acabou de nascer? Qual história deve-se contar a recém-nascida nação brasileira? Como o Brasil deveria encarar a si próprio logo após sua independência?

E neste ano de 2022, em que comemora-se os duzentos anos da independência brasileira algumas questões da época de Bellegarde podem ser retomadas e devidamente adaptadas, como ele fez. Qual país queremos ser nos próximos duzentos anos? O que o Brasil conseguiu realizar desde a independência e o que falta para ser feito? A culpa de eventuais problemas nacionais ainda pode ser creditada a colonização portuguesa? Até quando poderemos culpar a colonização portuguesa pelos eventuais problemas brasileiros? Quantos séculos ainda vamos precisar para assumir o Brasil como um país nosso e fazer dele a grande nação que tem potencial para ser? Reclamar do passado é fácil e cômodo, construir o futuro é tarefa difícil e necessária.

Pensemos então no que queremos fazer do Brasil nas próximas décadas e séculos. E que os livros didáticos do futuro tenham matéria-prima de grande valor para narrar as gerações que ainda virão.

Prof. Luciano Marcos Curi – Pós-Doutor em História Social – IFTM – Câmpus Uberaba – Contato: lucianocuri@iftm.edu.br

 

Por Editor1

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