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Afinal, o que é Técnica?

 

“O cientista não é o homem que fornece

as verdadeiras respostas; é quem faz as

verdadeiras perguntas.”

Claude Lévi-Strauss

 

Existem certas palavras que utilizamos diariamente sem refletir sobre o seu significado. E não é apenas no cotidiano. Certas palavras até mesmo escritores e estudiosos fazem um uso tão variado que quando nos perguntamos qual é o seu significado exato ou preciso, ficamos surpresos com a amplitude e diversidade de definições que encontramos.

Esse é o caso da palavra Técnica. Ela é muito utilizada, mas quando aprofundamos nosso conhecimento verificamos que ela possui vários significados. Dizemos que ela é polissêmica, tem vários sentidos.

Mas reconhecer sua polissemia não resolve nosso problema. Afinal, precisamos saber o que é Técnica e quais definições existem sobre ela. Neste momento, algumas perguntas surgem e precisam ser abordadas, mesmo que as vezes não seja possível respondê-las em caráter definitivo. Algumas dessas perguntas são: Afinal, o que é técnica? Qual a diferença entre técnica e tecnologia? Tecnologia é o estudo da técnica? Quem são os estudiosos e teóricos da técnica? Qual a diferença entre técnica e ciência? Quando surgiram as primeiras técnicas na história humana? Entre outras tantas perguntas.

Comecemos então pelo desafio da definição. De definir o que é técnica. Conforme o sentido adotado altera-se nossa compreensão. Por quê? Os estudiosos definem técnica de modo amplo ou restrito. Assim, se admitirmos como válido um conceito de técnica mais amplo teremos como resultado uma história da técnica que cobrirá praticamente toda história humana. Ao contrário, se admitirmos um conceito de técnica mais restrito entenderemos que a técnica é uma das muitas dimensões da vida em sociedade. Portanto, a diferença entre as definições e seus resultados é significativa.

Alguns estudiosos definem a técnica de forma ampla e a entendem como toda ação humana sobre a natureza ou sobre a própria humanidade. Ou seja, todo ato e procedimento capaz de produzir um efeito determinado. Neste sentido, definem a técnica como algo próprio do ser humano e, portanto, inexistente na natureza. A técnica seria a capacidade humana de produzir algo, atingir um determinado resultado. Portanto, dentro desta definição ampla estaria incluída praticamente toda a cultura humana. Técnica e cultura humana seriam sinônimos e não haveria diferença entre ciência, arte e tecnologia. Enfim, a história da humanidade seria uma espécie de história da técnica. Observe que a técnica, neste caso, é usada no singular como sinônimo de cultura humana e diferenciada da natureza.

Outros estudiosos definem a técnica de modo mais restrito. Eles entendem a técnica como um procedimento específico para um fim determinado e bem delimitado dentro da cultura humana. Neste sentido, seu uso seria no plural e refere-se as variadas técnicas existentes na arte, nas profissões, no cotidiano e na ciência. Assim, todas as técnicas seriam um conjunto de regras, normas ou protocolos criados ao longo da história, testados, experimentados e estabilizados, utilizados para se chegar a um certo objetivo. Aqui a técnica se liga ao saber fazer e dominar as técnicas é o mesmo que “saber fazer algo”. Isso não significa que a técnica sempre resulte em objetos materiais, produção de artefatos tangíveis, embora essa visão tenha se consolidado em determinado momento da história. Contudo, existem técnicas para fins imateriais como técnicas vocais ou técnicas de pesquisa.

Para exemplificar mais detalhadamente essa questão vamos aos exemplos do bolo e do nó de gravata. Existem variadas técnicas para preparar um bolo, as técnicas de panificação. Para que ao final tenhamos um bolo é preciso a utilização de determinado número de ingredientes, em quantidades específicas, que serão trabalhados, manuseados, cada a um no seu momento, obedecendo certas regras para que ao final tenhamos um bolo digno deste nome. Ou seja, se a técnica não for cumprida o produto final ficará comprometido.

O nó de grava é a mesma situação. Para que ao final tenhamos um nó adequado e apresentável, o nó obedece a certos passos, encadeados e ordenados, que se forem realizados de modo diferente e divergente, o nó final não atenderá ao resultado esperado. É claro que existem centenas de nós de gravata, mas cada um deles implica uma técnica.

Portanto, se alguém perder a receita do bolo, o “modo de fazer”, sua recuperação poderá ser custosa. Veja o famosíssimo caso dos violinos stradivaris, cujo modo de fazer foi perdido e só recentemente redescoberto após custosas pesquisas. Mesmo assim, alguns argumentam que o resultado sonoro final ainda não é o mesmo. E a polêmica prossegue. O nó de gravata precisa ter sua execução anotada e detalhada, se não ele se perderá. Toda técnica, como produto da cultura humana, precisa ser aprendida e praticada. Assim, tanto a elegância, quanto a alimentação podem ficar comprometidas se as técnicas adequadas não forem utilizadas. Essa definição mais restrita de técnica é comumente utilizada na Educação Profissional, seja ela Técnica ou Superior. Cada profissão tem sua tecnicidade e tecnalidade específicas.

Portanto, a palavra técnica ou o conceito de técnica não é único e suas variedades existem até a atualidade. Portanto, se uma diferenciação adequada não for realizada, a incompreensão pode dominar a discussão sobre o tema.

Mas quando foi que surgiu essa variação de definições sobre a técnica? A resposta para essa pergunta ainda não está inteiramente disponível. Sabemos que a palavra técnica é originária do grego “Téchne”, que por sua vez tem sua raiz na palavra sânscrita “Tvaksh”, que significa fazer e aparelhar. Essa palavra foi frequentemente traduzida para o latim como “Ars”, que significa arte.

Tanto no mundo grego, quanto romano, “Téchne” e “Ars”, ou seja, técnica e arte, significavam fazer algo material ligado a transformação por intermédio da ação humana e também fazer algo belo, tornar visível algo, sempre relacionada a ideia de um modo eficaz para se atingir uma finalidade de maneira apropriada. Neste sentido, durante todo o período medieval se falava em Artes liberais (do intelecto) e Artes mecânicas (manuais).

Assim, uma pessoa habilidosa é aquela que domina as técnicas necessárias de determinada área. A técnica como atuação qualificada, um fazer qualificado. Portanto, o bolo e a gravata dependem de técnicas específicas. Saber uma, não implica saber a outra. Dessa forma, o mundo das técnicas seria plural e amplíssimo. Técnicas manuais, simbólicas, racionais, estéticas, produtivas entre outras tantas possibilidades.

Contudo, ao longo da história cada vez mais a técnica passou a ser identificada com os afazeres manuais: as Artes Mecânicas. O seu aspecto criativo e inventivo foi perdendo espaço e as características repetitivas e alienantes foram acentuadas. Essas mudanças históricas e sociais foram frutos de uma longa história que remonta a Grécia Antiga e perpassa toda a trajetória de formação da chamada Civilização Ocidental. De modo sintético, neste percurso a classes pobres ficaram cada vez mais circunscritas ao trabalho manual e as classes ricas ao trabalho intelectual.

Na época moderna, por exemplo, se falava em Belas Artes (pintura, escultura, arquitetura, música, dança, teatro) com dignas de prestígio e Artes Aplicadas (objetos decorativos, produção de itens de vestuário e alimentação) como aquelas cuja repetitividade e reprodutibilidade indicavam afazeres socialmente desvalorizados. Foi neste cenário que alguns autores começaram a criticar o trabalho técnico como opressor, alienante e desumanizante. A técnica pode se tornar desumanizante se os aspectos repetitivos e monótonos forem predominantes e acentuados. Um tecnicismo e uma tecnificação podem ser insalubres.

Foi a partir desta época, notadamente nos séculos XIX e XX, que surge uma corrente teórica anti-tecnicista. Muitos desses teóricos argumentam que a técnica após a Revolução Industrial se transformou em tecnologia. A invenção ou introdução de máquinas no setor produtivo diminuiu o valor do trabalho do indivíduo e acentuou a mecanicidade da produção.

Essa diferenciação entre técnica e tecnologia é assunto controverso entre os estudiosos. Alguns teóricos entendem que a tecnologia é um prolongamento, uma continuidade da técnica. Outros teóricos entendem que tecnologia é o estudo da técnica. Alguns argumentam que o termo tecnologia é adequado para se referir as mudanças produtivas ocorridas a partir da época moderna que alguns preferem chamar apenas de técnicas modernas.

Alguns entendem a tecnologia como os produtos que combinam ciência e técnica na época moderna, os ditos dispositivos. Estes diferenciam a técnica tradicional da tecnologia. No exemplo do bolo e do nó de gravata se eles forem produzidos com técnicas manuais, panificação artesanal e costurada manual estamos utilizando técnicas tradicionais. Se utilizarmos uma batedeira de bolo e uma máquina de costura empregamos tecnologias modernas. O que é melhor ou mais adequado? Eis outro debate difícil e polêmico. E o que seria então a ciência? De modo sintético, neste cenário, a ciência seria o conhecimento ou saber produzido pelos seres humanos para explicar o mundo.

Enfim, no século XX a grande controvérsia entre tecnófilos e tecnófobos se configurou como um debate importante que marcou época. Os primeiros entusiastas e os segundos pessimistas quanto a capacidade da técnica e da tecnologia resolverem os problemas humanos ou acentuá-los.

Desde o surgimento das primeiras técnicas na pré-história até a atualidade o debate sobres as técnicas e seus impactos prossegue vivo entre eufóricos e melancólicos, integrados e apocalípticos. E seja quais forem nossas opções teóricas e políticas, a técnica é um tema que interessa a todos pela sua importância. A técnica é uma das dimensões da vida humana ou ente salvador e redentor da humanidade? Libertação ou nova escravidão? Antropocentrismo ou tecnocentrismo? Qual dessas visões devem prevalecer? Mais humanidade ou mais tecnologia?

Existem momentos que terminar com perguntas é melhor do que com afirmações. Afinal determinadas certezas de certas épocas podem evidenciar nossa falência crítica perante grandes problemas.

 

Prof. Luciano Marcos Curi – Pós-Doutor em História Social – IFTM – Câmpus Uberaba – Contato: lucianocuri@iftm.edu.br

Por Editor1

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