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História, cultura e civilizações: quando termina a pré-história?

 

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Quando começa e termina a pré-história? O período pré-histórico teve um início? Qual? Ele teve um fim? Qual foi? Os egípcios e a mesopotâmicos podem ser considerados povos pré-históricos? O que vem depois da pré-história? O que distingue uma sociedade pré-histórica de uma sociedade histórica? Egípcios, gregos e romanos podem ser considerados como civilizações? E, o Brasil é uma civilização ou é parte da chamada Civilização Ocidental? O que surgiu primeiro, a cultura ou a civilização?

Essas são perguntas que estão presentes quando estudamos a história humana.  Elas podem estar formuladas de forma direta e explícita como ocorre aqui neste artigo, ou de maneira mais tímida e indireta. Fazer perguntas amplas é uma forma de pensar, reconhecer nossas limitações intelectuais e também impulsionar novas pesquisas em busca de novos esclarecimentos. Afinal, a ciência é o fruto da dúvida levada a sério e a busca de respostas por meio de investigações criteriosas.

Quando estudamos a história humana, seja ela onde for, em qualquer parte do mundo, e em qualquer época é comum e frequente a elaboração do que historiadores chamam de periodização. Periodizar é dividir a vivência humana em períodos, épocas ou idades. Assim, falamos em período medieval e colonial, por exemplo. Isso é um procedimento que possui obviamente suas limitações, contudo também tem seu valor e utilidade organizativa e didática, como bem ressaltou o grande historiado francês Jacques Le Goff em obra especialmente dedicada ao tema. Interessante observar que alguns estudiosos se dedicam única e exclusivamente a localizar defeitos nas periodizações alheias, sem nada propor para melhorá-las e substituí-las. É claro que a crítica séria e comprometida tem um valor inestimável no Mundo da Ciência, mas quando é inconsequente e desprovido de princípios é maléfica. Algumas críticas beiram o negacionismo disfarçado de ciência.

Na atualidade considera-se a pré-história uma época da história humana e uma ciência. Alguns autores falam de Ciências Pré-Históricas. Essa época da história humana, a pré-história, foi, e continua sendo, objeto de diversos estudos e sobre ela possuímos inúmeros conhecimentos levantados por diversas pesquisas e estudiosos.

Contudo, a periodização que plantou a ideia de pré-história colocou alguns problemas que, na atualidade, ainda lutamos para resolver. Esse é um tema clássico, afinal toda periodização estabelece um marco inicial e final, e geralmente algumas características que nos permitem diferenciar uma época de outras épocas.

O teórico e intérprete do Mundo da Ciência chamado Thomas Kuhn explica que em determinados momentos da história da ciência certos debates e dúvidas sinalizam uma mudança de paradigma. Não são dúvida prosaicas ou casuais e sim indícios que certas teorias correntes estão esbarrando em suas limitações. Talvez seja o caso do que ocorre atualmente com a pré-história. Quando temos mais perguntas do que respostas e certas posturas defensivas e ofensivas externadas pode ser um sinal de limitação e saturação de um paradigma explicativo científico à beira da superação. Pode ser.

Esse é o cenário que observamos com relação a temática da pré-história. Quando este termo surgiu no século XIX para designar uma época adotou-se a existência da escrita como critério demarcador entre povos pré-históricos (sem escrita) e históricos (com escrita). Assim, o surgimento dos primeiros hominídeos seria o início da pré-história e a invenção da escrita marcaria o fim. Assim, dizia-se que a invenção da primeira forma de escrita na região da mesopotâmia entre 3.500 a 3.000 a. C marcaria o fim da pré-história. Mas em todo o mundo? Eis a questão….

Contudo, isso hoje é amplamente contestado e questionável pelos avanços da pesquisa científica em diversas áreas sobre este período. Tais pesquisas nos mostraram uma pré-história muita mais variável, rica em diversidade cultural, dinâmica, espalhada por todo o mundo e que um acontecimento como a invenção da escrita num determinado ponto do planeta, ainda que indiscutivelmente revestido de grande valor, seria critério insuficiente para delimitar o fim da pré-história em todo o mundo.

O debate que veio a seguir foi o aprofundamento dos estudos pré-históricos. Isso levou a compreensão da existência de várias pré-histórias e não uma única. Pré-história Geral, Americana, Brasileira, Centro-americana, Africana, entre tantas outras. Para exemplificar essa questão a Universidade de Cambridge publicou em 2014 uma obra magistral e colossal de três volumes, totalizando 1892 páginas, intitulada “The Cambridge World Prehistory” (tradução livre: A pré-história mundial). Obra coletiva de diversos especialistas mundo afora, nela ainda se adota a invenção da escrita como critério de término da pré-história, embora em texto introdutório do primeiro volume os organizadores justifiquem sua posição e informem: “(Esta obra procede) um exame sistemático e oficial da pré-história de todas as regiões do mundo, desde os primórdios das origens humanas na África, há dois milhões de anos, até o início da história escrita, que em algumas áreas (do planeta) começou há apenas dois séculos”. Ou seja, para eles a escrita continua demarcando o final da pré-história, porém consideram sua introdução em cada ponto do planeta.

Contudo, é preciso reconhecer dois fatos. Primeiro, estamos diante de um assunto espinhoso para a maioria dos historiadores, à saber: reformas e reformulações de periodizações. Segundo, a utilização da invenção da escrita como critério único de demarcação do fim da pré-história é muito criticado e cada vez mais insustentável.

Isso nos leva a outras questões inevitavelmente. Algum estudioso ou teórico já estudou essa questão? Há explicações alternativas que podem ser examinadas na busca de uma solução para o impasse? A resposta é sim. Seu nome é Alfred Weber.

Alfred Weber (1868 – 1958) foi um economista e sociólogo alemão que estudou o tema da cultura e das civilizações. Ele era o irmão mais velho do famoso sociólogo Max Weber. Sua obra alcançou certa acolhida e notoriedade, o que permitiu inclusive que fosse traduzida para diversos idiomas, depois viveu um período de esquecimento e até de indiferença e agora começa a ser resgatada. Sua teorização começou antes da Primeira Guerra Mundial e se estendeu até o período pós-Segunda Guerra Mundial.

Como estudioso da cultura ele postulou que certas sociedades poderiam ser consideradas civilizadas mediante certas características observáveis. Portanto, a existência da cultura é anterior as civilizações e remonta a pré-história.

É uma longa história. Afinal, quando a palavra civilização surgiu, utilizada no singular, ela era carregada de certo julgamento de valor pois desmerecia certas sociedades que eram consideradas na época como atrasadas, chamadas de bárbaras ou selvagens. Dito de outra forma, o civilizado era um povo considerado desenvolvido, adiantado, e pré-histórico ao contrário um povo atrasado.

Mas, a palavra civilização adquiriu outros significados ao longo do século XX, conforme nos ensina o grande historiador francês Fernand Braudel. Ela passou a ser usada no plural e designar sociedades culturalmente estáveis e politicamente organizadas. Neste momento a palavra “civilizações”, grafada no plural, refere-se a sociedades que possuem uma cultura comum que alicerça a identidade de uma determinada população, vivendo numa determinada época. Assim, fala-se de civilização grega, ocidental, islâmica, chinesa, etc. Por isso, o livro de Braudel se chama Gramática das Civilizações. Ou seja, a palavra “civilização” deixa de ter um uso valorativo e comparativo e passa a se referir a determinadas formações históricas e suas características. Portanto, um uso histórico e arqueológico e não mais hierarquizador de povos e culturas.

Foi neste ponto que Alfred Weber foi retomado com sua teorização baseada nas observações sobre determinadas sociedades pré-históricas que se complexificaram, se tornaram internamente mais complexas ou diversas, a divisão do trabalho no seu interior se acentuou, e ganharam assim novas formas históricas que chamou de civilizações. Ele observou quatro características civilizacionais nesta mudança histórico-cultural. São elas: cultura comum, organização política, escrita e urbanização.

Assim, se na pré-história as pessoas viviam em pequenas comunidades, tribos ou aldeias, a partir das primeiras civilizações passaram a existir governos que dominavam territórios mais amplos que organizavam exércitos, leis próprias, grandes obras, entre outras ações, que antes inexistiam. Isso não significa que toda população se urbanizou. Longe disso. Apenas que novas formas histórico-políticas e culturais que cobriam grande territórios passaram a existir, como ocorreu no Egito.

As primeiras sociedades a possuírem pelo menos três das quatro características civilizacionais Alfred Weber chamou-as de Civilizações Primárias ou Primeiras Civilizações. Estudos posteriores apontaram a existência de sete civilizações primárias: Suméria (na Mesopotâmia); Egito antigo, China antiga, Índia antiga, Maias, Astecas e Incas.  Conforme destacado, nem todas elas possuíam as quatro características, mas pelo menos três delas. Os Astecas, por exemplo, apesar das controvérsias, não possuíam escrita, mas decididamente tinham as outras três características. Estas civilizações influenciaram posteriormente outros povos.

Enfim, essa forma de organização social chamada civilização surgiu inicialmente em alguns pontos do mundo e depois por influência e contatos diversos espalhou-se. É claro que a teorização de Alfred Weber não pode ser retomada inteiramente de maneira acrítica. Afinal, ele articulava em sua intepretação um ideal de progresso e inevitabilidade histórica que hoje são amplamente recusados e que não foram confirmados pela história humana.  Mas, sua teorização oferece uma visão de conjunto da história humana elaborada a partir do que ocorreu ao longo do desenvolvimento histórico que tem sua funcionalidade e valor.

Alfred Weber argumentou que depois das civilizações primárias vieram as secundárias que surgiram numa época em que o modelo civilizacional de organização societária já existia e puderam por intermédio de contatos culturais inclusive copiar-lhe certas características. Caso da Grécia e Creta com relação ao Egito, por exemplo.

Assim, a teorização de Alfred Weber conseguiu demarcar o fim da pré-história de maneira mais condizente, preservando-lhe sua existência e ultrapassando o debate sobre a utilização única e exclusiva da invenção da escrita como critério demarcador. Neste sentido foi um avanço, por que nenhum estudioso até hoje reúne num mesmo grupo, por exemplo, o Egito antigo e os povos pré-históricos como a mesma forma de organização societária. Depois da vida pré-histórica vieram as civilizações.

Por fim, é importante ressaltar que essa reforma da demarcação final do período pré-histórico permitida pela teorização de Alfred Weber tem grande valor no Ensino de História, pois traz uma resposta condizente a questões até então explicadas de maneira imprecisa.

 

Prof. Luciano Marcos Curi – Pós-Doutor em História Social – IFTM – Câmpus Uberaba – Contato: lucianocuri@iftm.edu.br

Por Editor1

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