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Bovarismo: um mal que paralisa o Brasil.

 

O conceito de bovarismo não é novo e já foi utilizado diversas vezes para ajudar a explicar e compreender a realidade brasileira. Diversos estudiosos utilizam este conceito para entender o que se passa com a sociedade brasileira e explicar as dificuldades crônicas e teimosas de muitos de nossos problemas que não se resolvem e se eternizam, de forma trágica para grande parte dos brasileiros.

Este conceito surgiu, na França, no final do século XIX, a partir da grande repercussão que teve o romance do escritor Gustave Flaubert intitulado Madame Bovary. Essa obra foi publicada originalmente publicada em 1856 e produziu algumas polêmicas. A protagonista do livro, chamada Madame Bovary, daí o termo bovarismo, é uma mulher casada que vive descontente e desiludida no amor, uma frustração permanente com seus companheiros que considerava e julgava reiteradamente imperfeitos.

Isso ocorreu porque sua forma de pensar, sua mentalidade, foi contaminada por uma série de romances que foram lidos na infância e adolescência e que resultou na formação de um imaginário amoroso, ou ideal amoroso, inalcançável. Isso porque seu marido, e demais parceiros, nunca atingiam a perfectibilidade que estava acostumada a encontrar nos romances que foram assimilados de maneira acrítica e sem contrapô-los a realidade da vida humana.

Enfim, é uma patologia psicológica, ou psiquiatra, que causa um descompasso entre realidade e idealidade, gerando uma grave distorção de autoimagem. Essa falsa percepção de si gera as “manias de grandeza”, acreditar que somos os melhores, os mais admiráveis, mesmo sabidamente não sendo, e pode até descambar para uma mitomania. Isso pode ser desastroso, pois além de nos colocar fora do caminho da construção de um futuro melhor, pode ainda ocasionar novos problemas devido aos desvios éticos e comportamentais que o bovarismo pode ocasionar.

Um dos primeiros intelectuais a perceber o potencial explicativo do livro foi o filósofo francês Jules Gaultier que publicou em 1892 o livro intitulado “O Bovarismo”.  No Brasil, um dos primeiros a utilizar este conceito para analisar a sociedade brasileira foi o literato Lima Barreto. Depois dele diversos estudiosos utilizaram esse conceito, dentre eles, o mais conhecido foi Sérgio Buarque de Holanda em seu livro clássico sobre a formação do Brasil, intitulado Raízes do Brasil de 1936. Depois de Sérgio, no entanto, o conceito foi, e continua, sendo utilizado por diversos estudiosos da sociedade brasileira, entre os quais se destacam: Paulo Prado, Lúcia Miguel Pereira, Nicolau Sevcenko, Paulo Arantes, Roberto Schwarz, Lilia Schwarcz e Heloísa Starling.

A história do conceito de bovarismo, tanto no Brasil quanto no estrangeiro, é um caso bem conhecido daquelas ocasiões em que a literatura influenciou a pesquisa científica e lhe ajudou a enxergar e formular velhos problemas que atravancam e paralisam a sociedade e os indivíduos. Após sua sistematização por Jules Gaultier o conceito ganhou ampla utilização na crítica ao tipo de sociedade que se consolidava no mundo inteiro após a Revolução Industrial e os novos comportamentos que esta produziu.

Percebeu-se que autoimagens distorcidas são fontes de grandes problemas e percalços, além de comprometer gravemente a construção de futuro sustentável. Enfim, o conceito permite passar do autoengano e do ufanismo para a lucidez crítica da vida e da sociedade, primeiro passo certeiro na construção séria, ética e comprometida de um futuro melhor.

Mas qual é a crítica expressa no livro que tanto incômodo e reflexão produziu? Lembrando que o autor de Madame Bovary foi processado na época na França e terminou absolvido após um processo controverso e sofrido. A resposta é assustadoramente simples.

Através da protagonista da história de Gustave Flaubert, a Madame Bovary, ficam evidenciados o vazio emocional e existencial que o consumismo capitalista pode nos levar, além de outros problemas. A eterna insatisfação na vida amorosa da personagem nada mais é do que uma extrapolação, uma continuidade, do modo de vida capitalista, principalmente após a Revolução Industrial, que cultiva fortemente pseudo-necessidades de sempre estar-se consumindo coisas novas, novos objetos, de estar em dia com a moda.

Esse vazio emocional que procura-se preencher com o consumismo e o modismo leva-nos a consequente construção de relações instáveis e insustentáveis. Enfim, esvazia-se o compromisso ético por uma vida melhor e prima-se pela satisfação. A sociedade estaria no rumo errado. Madame Bovary se viu escrava do consumismo e esse foi um dos motivos que a levou a ruína e muitos que estavam a sua volta.

O gosto pelos modismos, tão característico de nossa época, é uma armadilha perigosa que nos desvia de uma vida verdadeiramente plena. De “modismo em modismo, eu vou”! Será? Para onde?

O preço a pagar é alto. Na atualidade, por exemplo, vivemos o perigo do aquecimento global e desastres naturais, fruto de uma sociedade que não consegue enxergar seus problemas principais. Alguns dizem que “o importante é estar na moda”. Será? Porquê? Para que?

Esse problema afeta diversos setores da vida brasileira, inclusive, a Educação. Infelizmente na área educacional de tempos em tempos surgem modismos febris, que tentam converter a prática educacional e passado algum tempo logo se percebe sua inconsistência, superficialidade e até suas consequências negativas e estragos.

Devemos ter mais consistência, clareza da realidade, senso ético, gosto pelo trabalho se quisermos construir vidas e sociedades melhores e mais justas. O exame crítico e corajoso é o caminho e não a adesão apaixonada por modismos cíclicos, que “vão e que vem”, sem uma lucidez crítica a nos conduzir.

Enfim, no caso brasileiro precisamos repensar essa falsa percepção de si. O Brasil quer ser a Europa, os Estados Unidos, mas não se assume. Ignora a América Latina e esconde, ignora, ou não faz o enfrentamento real de suas mazelas.

Como argumenta Sérgio Buarque de Holanda não é a mania de procurar pelo milagre do dia, a crença no imprevisto e na improvisação que permitirá a construção de uma nação brasileira justa, democrática, inclusiva, entre outras características. O problema não é a insatisfação com o presente, que caso se converta numa ação decidida, planejada, realista pode ser positiva se for capaz de transformar o presente e o futuro em novos e melhores tempos. Enfim, sem bovarismos, modismos e ilusões. Partir do que somos, rumo ao que queremos ser.

 

Prof. Luciano Marcos Curi – Pós-Doutor em História Social – IFTM – Câmpus Uberaba – Contato: lucianocuri@iftm.edu.br

Por Editor1

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