Memória Interação: Humberto Quintino: ‘Cansei de escutar que tênis não era esporte pra pobre e negro’

O atacante que virou tenista
O ano era 1968, e o Brasil vivia o auge de um dos piores momentos políticos e sociais da história. Em plena ditadura militar, um menino pobre e negro, morador do Barreiro, em Araxá, driblava as dificuldades e a fome correndo atrás de uma bola de “capotão” no meio da rua. Aos 15 anos, o garoto franzino, de habilidade especial com a bola, jogava futebol na equipe amadora do Estância, e, mesmo com corpo de criança, já se destacava com a bola nos pés entre os atletas do time adulto. Humberto Quintino era um centroavante (atacante) veloz e goleador. Qualidades estas que o levaram, um ano depois, ao juvenil do Clube Atlético Mineiro, onde chegou a treinar com garotos de sua idade e hoje conhecidos ex-craques como: Paulo Izidoro, Marcelo Oliveira, Heleno, Getúlio e Reinaldo. Em Belo Horizonte, longe da família e sem recursos para se manter no Galo, foi obrigado a voltar, meses depois, à sua cidade natal (Araxá), para ajudar os pais no sustento da família. Começou a trabalhar como apanhador de bola de tênis nas quadras da Hidrominas, no Barreiro, onde o esporte era praticado apenas por um seleto grupo de pessoas de maior poder aquisitivo. Quintino conta que “só mesmo quem era muito rico jogava tênis. Geralmente eram os turistas do Rio, São Paulo, estrangeiros e alguns profissionais liberais e jovens da elite araxaense. Naqueles tempos, uma raquete de tênis custava “os olhos da cara”! Levado pelos obstáculos que, ainda menino, encontrou pela frente, Humberto Quintino, aos poucos, foi trocando os campinhos de várzea e as “peladas” de rua pelas quadras de saibro e os paredões do tênis. A bola dele também mudou de tamanho. A determinação e o gosto pelo esporte só aumentaram com o passar dos anos. Bastante nostálgico, hoje o veterano professor de tênis ainda se emociona ao contar como se tornou um dos mais importantes tenistas e professor do esporte da raquete grande de Araxá. “Um dia, durante uma partida de tênis na quadra da Hidrominas, o saudoso médico araxaense Dr. Milton Tomasovich, que era um craque do esporte e chegou a se tornar campeão estadual de tênis nos anos 60 e 70, me disse que o tênis era um esporte mais seguro e social. Já o futebol tinha muito contato físico, e o atleta se machucava muito. E o melhor caminho, segundo o Dr. Milton, seria a bolinha e a raquete”. Quintino diz que não teve dúvida! Como já levava jeito com a raquete e sempre era incentivado pelos praticantes do tênis, então abraçou a raquete e a bolinha de corpo e alma.
De atleta dedicado a professor respeitado:
Nos idos anos de 1970, no auge da carreira, Humberto Quintino, de ex-apanhador de bola, passou a ensinar a arte do esporte da alta sociedade para os ricos e atletas da elite. O professor Quintino revelou que, no ano de 1973, suas aulas de tênis eram tão disputadas que a empresa mineradora CBMM chegou a patrocinar um curso de especialização de tênis para ele na cidade paulista de Serra Negra, numa clínica de tênis, com o consagrado e ex-tenista brasileiro, Carlos Alberto Kirmayr, durante 30 dias. “Foi nos anos 70, do século passado, onde vive o auge da minha carreira. Além de dar aulas de tênis nas quadras do Barreiro (Hidrominas), também ministrava aulas no Araxá Tênis Clube (ATC), Girassol Clube de Campo, em Patrocínio no Quatiguá Tênis Clube e na capital paulista.”
Os ídolos e pupilos:
Hoje, aos 58 anos, o professor Quintino ainda desafia o tempo e se renova a cada dia quando entra em quadra para ensinar a arte e as técnicas do tênis. Sempre tranquilo e sereno, esconde-se atrás da humildade ao falar dos ídolos e dos atletas que começaram com ele nas quadras de Araxá. Conta que assistiu, de perto, a muitas partidas de Maria Ester Bueno, do argentino Guillermo Vilas, do brasileiro Thomaz Koch e de seu maior ídolo no esporte, o ex-tenista sueco Björn Borg. “Tive a oportunidade de acompanhar, ao lado de amigos e ex-alunos de Araxá, grandes jogos de tênis e exibições dos maiores nomes do esporte das décadas de 60, 70 e 80, do século passado. São momentos que jamais vão sair da minha memória.” Mas Quintino se enche de orgulho mesmo é quando se lembra de alguns ex-alunos que aprenderam a dar as primeiras raquetadas com ele. “Muita gente talentosa e que obteve sucesso no esporte treinou comigo. Entre esses bons alunos, destaco: Wellington Barcelos, Rubens Valtercides, Dumonzinho (Santos Dumont Guimarães Júnior), Daniel “Chicletinho”, Caio Porfírio, Marco Túlio Porfírio, Adriano Porfírio, Jane Porfírio, Humberto Porfírio, Alessandro, Dâmaso Drummond Neto, Galdencinho, entre tantos.”
Preconceito, discriminação, sacrifício e um sonho:
Mas a carreira e as empreitadas do professor como profissional do tênis não foram nada fáceis. Com tristeza, ele explica que Araxá conheceu a decadência do tênis no início da década de 1980. “As transições de governo, mudanças de gestão pública, falta de apoio, de espaço e de incentivo acabaram apagando parte dessa história gloriosa do tênis na cidade. O fechamento do Grande Hotel para reforma sepultou de vez a tradição das competições nacionais e internacionais que eram realizadas nas quadras da Hidrominas. Os grandes nomes do tênis nacional deixaram de visitar a cidade. O ATC também foi esquecido e abandonado pelas autoridades locais. Há muito tempo, como funcionário da prefeitura de Araxá, eu cuido do que restou das quadras do ATC. Aqui eu sou guarda, faxineiro, eletricista, bombeiro... faço um pouquinho de tudo para conseguir dar aulas para as crianças e jovens carentes da periferia da cidade.” Dificuldades que o menino negro, pobre já conhecia, com detalhes, aos 15 anos, quando se encantou com o esporte tido como da elite, dos ricos. Obstáculos e problemas sociais que, ainda nos dias de hoje, sente na pele e na alma. Segundo ele, são feridas profundas, provocadas pelas mazelas e injustiças que tentaram vencer a partida mais difícil em 43 anos da carreira do professor Humberto Quintino: o abominável jogo contra o preconceito e a discriminação. Um assunto tão nojento e baixo, que consegue superar toda a timidez e serenidade do mestre Quintino, dando lugar à indignação. “Quantas vezes, ao longo de 43 anos de carreira, nos projetos sociais e gratuitos de tênis, voltados para crianças carentes e jovens em situação de risco dos bairros de Araxá, eu cansei de escutar que o tênis nunca poderia ser um esporte para pobres e negros. Mas essas palavras de preconceito e discriminação se transformaram em combustível para que eu, um professor negro, de origem humilde, lá do Barreiro, com dedicação integral e fé, pudesse prosseguir com a missão de realizar o sonho de ensinar tênis para os garotos pobres lá da periferia, descobrir grandes talentos, tirar essa meninada das ruas, do crime e das drogas e ter o orgulho de provar para aquelas pessoas que sempre foram preconceituosas e pobres de espírito que o negro e o pobre também são gente, têm alma, talento, merecem respeito como qualquer pessoa. E se tornar um grande jogador de tênis, vencedor, como eu fui!”
O futuro:
A trajetória do mestre Quintino no esporte teve alternância, com momentos bons e ruins. Do auge à decadência do tênis em Araxá, apenas uma coisa não mudou: a dedicação integral do professor, de resgatar a história de sucesso do tênis em Araxá. Hoje, vendo a reforma e ampliação do ATC, Quintino vive dias de expectativa e otimismo. Ele confessa, com entusiasmo de iniciante, que não vê a hora de o ATC ficar novo outra vez, para continuar batendo sua bolinha, ensinando o esporte às crianças carentes, para levar sua missão adiante. Reconhecimento e justiça que o guardião do tênis de Araxá ainda não conseguiu, mesmo depois de uma vida inteira doada ao esporte da raquete e da bolinha, mas garante que jamais vai desistir desse sonho que move sua vida.
Humberto Quintino faleceu no dia 15 de dezembro de 2023.
A reportagem faz parte da edição número 01 da Revista Esportes – Bike e Aventura de março de 2016.
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