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Cartagena, (AE) – Nunca gostei da ideia de pendurar um audioguia no pescoço e escutar gravações sobre a história de um museu ou de uma determinada atração. Julgava se tratar de uma bobagem que eliminava o importante trabalho de um guia de carne e osso. Porém, meio por culpa de Cartagena, e muito por culpa de García Márquez, o preconceito ruiu.

 O tour eletrônico da Tierra Magna (tierramagna.com), produzido em parceria com a Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Jornalismo Ibero-americano, definitivamente não é barato (48 mil pesos colombianos ou R$ 56 por 4 horas). Mas, ao percorrer 35 pontos que fazem parte da biografia e do imaginário do autor, faz valer cada centavo. Compreenda as inspirações de Gabo munido de um mapa caprichado e deixe-se embalar por trilhas sonoras bem elaboradas, além de leituras intensas dos principais trechos de suas obras. Aqui, alguns pontos-chave:

Porta do Relógio – Foi neste lugar que García Márquez ouviu falar de um certo coronel José Manuel Buendía, que vivia na região de Turbaco e que, em 1947, destoou na multidão. Durante discurso do candidato à presidência Jorge Eliécer Gaitán, teria surgido um homem de bigodes com uma bandeira vermelha no lombo de um burro contando causos da Guerra dos Mil Dias (1899-1902). Dizia ele que, após ser ferido a bala, havia se curado nas águas do Rio Madalena (o maior do país) e que, desde então, se tornara imortal. Assim nasceu a história do clã Buendía, protagonista de Cem Anos de Solidão, de 1967, a mais célebre obra do autor. Um pouco mais adiante, ao lado da Estátua Noli Me Tangere, ou “não me toque”, Gabo viveu um momento decisivo em sua vida. Seu pai, que queria o filho advogado, e não jornalista, disse, furioso: “Comerás papel!”. Assim, García Márquez se decidiu definitivamente pelo jornalismo.

Calle San Juan de Dios – Foi no número 3-81 que o jovem repórter García Márquez arrumou seu primeiro trabalho, em 1948: ali funcionava o jornal El Universal. Apesar de não receber salário, teve a oportunidade de aprender muito com o editor Clemente Saballa, que o deixava dormir sobre as bobinas de papel na gráfica. Na frente do diário está até hoje o Convento de San Pedro Claver, de onde partiram as mais rudes tentativas de censura. Bem mais tarde e já laureado com o Nobel, Gabo comprou dois andares de um prédio na mesma rua, e ali funciona até hoje a Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Jornalismo Ibero-americano, gerenciada por seu irmão Jaime.

Catedral de Cartagena – A mais importante entre as 44 igrejas de Cartagena atua quase como protagonista em O Amor nos Tempos do Cólera. Ali, o personagem Florentino Ariza vê pela primeira vez sua musa, Fermina Daza, grávida de 6 meses, e decide fazer nome e fortuna para estar à altura de conquistá-la. Até que lhe entrega furtivamente a primeira carta de amor durante a missa de Natal. É ainda onde Fermina se casa com Juvenal Urbino, cujo funeral também ocorre ali. Na lateral, na Plaza de la Proclamación, Fermina foi coroada deusa na ficção. Na vida real, um inglês foi queimado vivo ali durante a Inquisição. Gabo retrata uma Cartagena que nunca foi feliz ou alegre, mas escravista e cruel.

Portal de los Mercaderes – Aqui tem início a novela Do Amor e Outros Demônios, quando a protagonista Sierva María de Todos los Ángeles é mordida por um cão raivoso e passa a ser possuída pelo diabo. Na época em que a história se passa, há mais de 200 anos, funcionava neste ponto um mercado de escravos, com pretendentes dando lances por lotes de negros vindos da África. Hoje, docerias e lojas de souvenir dividem as arcadas em tons laranjas e amarelados.

Convento de Santa Clara – Num dos mais suntuosos edifícios de Cartagena hoje funciona o Hotel Sofitel Santa Clara (sofitel com). Ao cobrir para o jornal a retirada de uma das criptas funerárias dali, em 1949, Gabo se inspirou para escrever Do Amor e Outros Demônios. Entre o pátio interno e os imensos corredores, o padre Cayetano Delaura se apaixona pela jovem Sierva María de Todos los Ángeles, a quem deveria exorcizar. O hotel fica bem ao lado da casa onde o escritor passa alguns meses todos os anos.

No centro antigo, os hotéis mais charmosos  

  

Cartagena,  (AE) – Depois de “é mesmo incrível?”, a pergunta que mais se escuta ao voltar de Cartagena é: “qual o melhor lugar pra ficar?”. Depende de seu perfil e bolso, porém os hotéis dentro da cidade antiga dispõem de mais opções de restaurantes e bares e, por estarem mais perto da história, um charme natural que os grandes hotéis da orla não têm.

 Muitos centenários sobrados com terraços de madeira viraram elegantes hotéis-butique, como o Casa del Arzobispado (casadelarzobispado.com), do fim do século 17, com diárias a partir de US$ 257. Já o Anandá tem clima intimista e vista privilegiada (desde US$ 270, em anandacartagena.com). Alternativa econômica sem sair de dentro da muralha, com ótimo custo-benefício especialmente para mochileiros, o hostel El Viajero (hostelcartagena.com) tem diárias desde US$ 19.

 Para conhecer o lado mais moderno da cidade e, de quebra, ficar de frente para a praia, a opção é o bairro de Boca Chica. Ali estão hotéis de redes como Hilton (hilton.com; a partir de US$ 148) e o tradicional e mítico Hotel Caribe (hotelcaribe.com; desde US$ 155), primeira hospedagem de luxo construída em Cartagena, em 1941. A piscina é uma delícia e, caso queira aprender a mergulhar, instrutores ministram cursos certificados pela Padi (a partir de US$ 340; buzosdebaru.com).

 Estômago cheio. A fome não tem vez em Cartagena. Em qualquer esquina, palenqueras enfeitadas com seus vestidos coloridos oferecem frutas frescas picadas sobre tabuleiros. As arepas, espécie de bolinho feito com massa de milho recheado e frito na hora, são um clássico das ruas – prove nos quiosques próximos à Porta do Relógio.

O calor úmido é intenso o ano todo, portanto comidas leves são quase um mantra. O ceviche de camarões, polvo e lula com milho e patacón (banana verde) frito (US$ 15) do moderninho La Perla (facebook.com/LaPerlaCartagena) parece coisa de realismo mágico. Não se confunda, como eu, e vá também ao vizinho Peru Fusión (restauranteperufusion.com), que mistura América do Sul e Ásia no menu, e está longe de ser uma roubada, como provam o sushi rock and roll (US$ 27), feito com camarões empanados, queijo e abacate, e o arroz norteño (US$ 12) verde, cozido com coentro e salpicado de frutos do mar.

Costumes e tradições da Colômbia    

Cartagena, (AE) – “Me sinto estrangeiro em todas as partes, menos no Caribe”, disse certa vez Gabriel García Márquez Ao contrário do escritor premiado com o Nobel de Literatura em 1982, o visitante talvez não se sinta imediatamente em casa nos 1.300 quilômetros da porção caribenha do litoral colombiano. Porém, assim como na obra-prima do autor, Cem Anos de Solidão – cuja inspiração surgiu por estas bandas -, é tudo uma questão de tempo. E de percepção.

Assim como no realismo mágico que permeia a obra de Gabo (como o autor é conhecido na Colômbia), estímulos não faltarão, especialmente em um lugar como Cartagena, principal cidade da região, a 260 quilômetros da pequena Aracataca – a terra natal do escritor.

Um pouco por seu 1 milhão de habitantes, outro tanto por seu compasso cativante e muito por sua História, com H maiúsculo. Por todos os lados, vestígios de séculos de colonização espanhola, entre 1533 e 1816 – com idas e vindas, inúmeras batalhas e heróis.

Destoante no horizonte da Cidade Velha, o Forte de San Felipe de Barajas, concluído em 1657, talvez não seja apenas o cartão-postal mais emblemático, mas a lembrança constante do lugar estratégico em que a cidade está encravada. Além de ter sido porta de saída para muito ouro rumo ao Velho Continente, Cartagena é também um excelente ponto de partida para desvendar costumes e tradições do Caribe colombiano.

Consta nos registros do indispensável Museu da Inquisição (Plaza de Bolívar, s/n.º) que na cabalística data de 11 de novembro de 1811, às 11 horas da manhã, houve um basta. Liderados por figuras como Pedro Romero, Germán Gutierrez e Ignácio “El Tuerto” Muñoz, os cartageneros declararam sua independência dos colonizadores. A alegria durou pouco, já que em 1815 o “pacificador” espanhol Pablo Morillo aportou na cidade acompanhado por 10 mil homens. Em poucos dias, mais de 6 mil moradores, entre crianças e mulheres, morreram.

Assim, Cartagena foi a última cidade colombiana a conquistar a independência, em 1816. Imprescindível a expertise acumulada por um certo Simón Bolívar, que atuou na libertação de vários países vizinhos – o que aparentemente lhe conferiu o direito a ocupar uns 80% de todos os bustos e estátuas colombianos, além de batizar dezenas de praças e ruas pelo país.

Foi, inclusive, em um banco da Plaza de Bolívar que o mais famoso escritor colombiano, hoje com 86 anos, pegou no sono em sua primeira noite na cidade, após chegar de Bogotá, em 1948, sem um tostão no bolso. Em pleno toque de recolher, decretado após a morte de um figurão militar, Gabo foi acordado por policiais ao anoitecer e encaminhado à delegacia. Levado a uma cela, surpreendentemente não apenas não ficou trancafiado como lhe foram oferecidos cama e comida. E a porta destrancada no dia seguinte.

No mínimo improvável, não? Situações como esta – somadas às lendas e ao clima mágico que naturalmente emana das paredes, das cores e dos olhares cartageneros – dão uma boa ideia do que inspirou Gabo a ambientar muitas de suas obras entre a quilométrica muralha de Cartagena. Emoção que exprime em sua autobiografia, Vivir para Contarla. “Bastou dar um passo dentro da muralha para vê-la em toda sua grandeza à luz violeta das seis da tarde, e não pude reprimir o sentimento de ter voltado a nascer.”

Por Editor1

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